Onde o mundo acaba… e eu começo – ou o contrário.

Foram 31 dias de estrada. Mas a viagem? A viagem se perde.

Chegado em casa resta a difícil tarefa de tentar traduzir em palavras o que foi tudo isso.

Não foram apenas 31 dias pois há 3 dias atrás nos despedíamos emocionados de Deborah e Ricardo em Porto Alegre e isso já parece que foi há um mês. Há nove dias andávamos tranquilamente entre pinguins e parece que foi há meses.

Há dezoito dias nos maravilhávamos defronte ao glaciar Perito Moreno após horas sendo sacolejados pela magnífica Ruta 40 como se precisássemos ser purificados – assim como a água fica ao correr pelos seixos e cascalhos dos rios – para presenciar tamanha beleza; e isso já parece o ano passado.

Há 31 dias saímos eu e Iara de casa, rumo à estrada, ao fim do mundo, e esta data já confunde-se com o dia em que planejei tudo isso. Quando idealizei isso mesmo?

Há dezesseis dias alcancei com minha companheira de vida e meus queridos amigos o fim do mundo, por terra, e isso já confunde-se comigo.

Como disse Deborah no post anterior, a viagem é uma metáfora. A estrada, seu caderno. Foram as Cataratas e o Glaciar; o calor empapuçante e o frio que se agravava com o vento impiedoso. O vento. A terra e o mar. O Canal de Magalhães. O Pacífico em Puerto Natales e as Torres del Paine. Os guanacos, pinguins, golfinhos, lebres, tatus e mais. Vinhos e cervejas. Parrilladas, hamburguesas e sandubas de miga. Os langostins e a centolla. O melhor arroz com feijão do mundo já em solo brasileiro num restaurante simples de beira de BR. O medo da falta de gasolina e o alívio de um posto com combustível e banheiro limpo. Pessoas incríveis que conhecemos e outras queridas que cruzamos no caminho. Os momentos de tensão e as risadas, muitas, de um grupo que consolidou uma amizade e cumplicidade em falta no mundo de hoje.

O carro, querido Pois É. Nossa casa e nosso companheiro. Quinto Elemento.

Ushuaia. O fim do mundo.

São Paulo. O início. O fim da viagem. Re-início. Minha casa que já me cultivava saudades. E ao mesmo tempo me traz uma saudade imensa de tudo isso que vivi.

Como os sentimentos dessa viagem, esse blog seguirá de forma meio misturada até que possamos contar tudo. Mas as coisas ainda estão um pouco misturadas, peço-vos paciência. Por enquanto, obrigado Iara, minha linda, meu amor; Deborah e Ricardo, queridos amigos e companheiros de viagem; e a todos que nos acompanharam por este blog. Sem vocês, nada disso seria tão rico e eu não me sentiria tão realizado.

O que fica

O que fica não é o rípio, nem o vento patagônico que chacoalha cercas, arranca portas de carros e atira pedras nos transeuntes. O que fica não é a solidão do deserto. Não é a ansiedade da ultrapassagem, não é o delírio das retas infinitas e das sombras no capinzal dourado.

Não fica o espanto com guanacos, condores, pinguins e golfinhos. O que fica não são os banheiros de posto de gasolina, nem os sanduíches de miga. Tampouco é o café fraco e ralo, o doce de leite forte e escuro, os refrigerantes com cor e gosto de desinfetante.

Nem ficam as pequenas cidades empoeiradas, nem as grandes cidades endurecidas. Não ficam os assustadores manifestantes com máscara e porrete contra as petrolíferas, nem a resultante crise de abastecimento de combustível. Não ficam as placas de Malvinas que “no son olvidables”, nem os adesivos de “Guillermo Go Home”.

O que fica não são cubos de presunto com cara de sabonete. Bife de chorizo que o garçom corta com colher. Centolla marinada no limão. Milanesa com ovo frito. Quilos de berinjela em qualquer coisa “com vegetais”.

Não fica a neve caindo em pleno verão. O sol rachando a pino e criando arco-íris na névoa, nas nuvens, na cascata. E já disse que não fica o vento, não fica mesmo, o vento passa.

Fica essa ideia doida de que viajar é só mesmo uma forma de voltar pra dentro da gente. E que a estrada é a melhor metáfora para a marcha rumo a lugar nenhum, em busca de sentido, e por isso há um desejo de que ela siga para sempre.  E fica esse amor inexplicável por quem segue junto.

Estamos, eu e Ricardo, de volta ao Rio. Longe da estrada. Iara e Daniel ainda seguem por mais uns dias. Boa sorte, amigos, saudade.

Todo mundo aí?

Oi, gente. Como vocês devem imaginar, não está sendo muito simples passar o dia na estrada, chegar à noite nos tantos fins de mundo por onde passamos e ainda postar. Ainda mais com conexões sempre meio precárias, muita fome e muito cansaço.

Estamos agora em para Puerto Madryn, uma cidade incrível, hospedados em um dos melhores albergues da Argentina segundo os guias especializados (com certeza o melhor em que estivemos até agora). Amanha o plano é acordar bem cedo para ver pinguins. Como estamos plenamente ocupados sendo felizes, colocar o blog em dia depois de tanto tempo de atraso vai ficar complicado. Temos planos de voltar a fazer o relato dia-a-dia, e o que nao falta é conteúdo pra isso. Talvez só consigamos dar conta disso quando voltarmos de viagem mesmo. Mas por hora acreditem que estamos todos muito bem, muito felizes, e que vamos voltar cheios de boas histórias pra contar.

Novidades a qualquer momento em outro boletim tao cheio de preguiça quanto de boas intençoes.

 

Dia 11 – De Esquel a Los Antiguos

Acordamos cedo em Esquel, considerando que o mapa dizia que teríamos um bom trecho da viagem no rípio. O café da manhã do hotel era razoável – o primeiro até agora a ter as legítimas medias lunas argentinas. Saímos com chuva, o que aliviou bastante o calor horroroso que vínhamos sentindo na estrada.

Nosso plano era chegar até a cidade de Perito Moreno – que não é onde está o glaciar, que fica em El Calafate. Prevíamos chegar exaustos, no fim do dia, só querendo cama.

Chegamos a Gobernador Costa, logo apelidada, obviamente, de ‘Governador Bosta’ para abastecer, e nos deparamos com uma fila imensa, que nos consumiu mais de meia hora. Nesse meio tempo, Daniel aproveitou para ir tomar um café que foi eleito o pior da viagem, que não é fácil, considerando que o café argentino fora de Buenos Aires é, na média, péssimo. De acordo com ele, tinha gosto de cup noodles.

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Mas sobrevivemos, e fomos embora até a parada seguinte, Río Mayo. Lá, aproveitamos para almoçar uns sanduíches de miga na lojinha de conveniência do posto, que tinha até wi-fi. Aliás, tirando o fato de que muitas vezes não têm gasolina, os postos da Argentina, em especial os YPF (que também costumam ter o combustível mais barato), têm se mostrado ótimas opções de parada. Banheiros normalmente limpos, lojas de conveniência com muitas opções, e, quase sempre, internet grátis.

E então, para nossa alegria, tão logo passamos um curto trecho de rípio, descobrimos que a maior parte da estrada estava asfaltada. Com isso, chegamos a Perito Moreno ainda bem cedo, por volta das 17h, e decidimos que, ao invés de ficar lá, íamos seguir até Los Antiguos, às margens do Lago Buenos Aires.

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Com essa decisão, ganhamos de presente uma estrada de visual maravilhoso, e a estadia numa cidade super charmosa. Ainda não há tanto turismo em Los Antiguos, mas já dá pra prever que em breve ela vai se tornar popular. Só espero que não vire Bariloche…

Tivemos um pouco de dificuldade, mas conseguimos encontrar cabañas para alugar a um preço razoável. As cabañas Las Marías estão longe da rua comercial da cidade – o que, num lugar assim, significa algo como 5 ou 6 quarteirões – mas são bonitas, confortáveis, limpas.

Jantamos no restaurante Viva el Viento, a única opção mais ajeitadinha, e que, por isso mesmo, cobra preços nada simpáticos. Mas a comida era muito saborosa e, exceto no caso da Iara, que pediu uma truta que veio sem guarnições, bastante farta.

Depois do jantar, fomos nos abastecer no mercadinho local, porque o trajeto até El Calafate ia ser longo, difícil e ermo, sem saber direito onde íamos poder parar ou, pior, abastecer  o carro.

Update em 05/03, por Iara:

Tanta coisa aconteceu nessa viagem que, mesmo este post tendo sido escrito enquanto ainda viajávamos e por tanto, a memória estava mais freesca, me dei conta de que omite o único incidente importante com o carro. Em alguma das paradas na estrada, como o vento estava a nosso favor, não nos atentamos a ele. Ao abrir a porta dianteira direita, quase ficamos sem ela: foi por pouco que o vento não levou-a embora. Teria sido o fim da viagem, claro. Como Ricardo foi rápido e fechou a porta de volta, ela só ficou empenada. Passamos o resto da viagem, “fazendo a Daiane”, ou seja, usando toda a nossa habilidade para, ao mesmo tempo, pular o câmbio e tentar não sujar o painel com os pés. Tínhamos registrado na memória que isso tinha acontecido no dia seguinte, mas num grande esforço de reconstituição me lembrei que já havia este problema em Los Antiguos. Mas seguimos viagem, a porta foi mandada a um funileiro e arrumada com sucesso, por uma facada bem menos dolorosa do que a incialmente prevista. Final feliz. \o/

Dia 10 – De Zapala a Esquel

(*post escrito em teclado desconhecido, favor desconsiderar faltas de acentos e outras bizarrices. Grata.)

Oi, pessoal!

Estamos vivos, estamos bem, mas nem sempre temos tempo ou energia pra postar. Mas nao abandonamos o relato da viagem, viu?

Vamos la, escrevo este post na quarta-feira, 1o de fevereiro, pra contar como foi o dia no sabado (nao tenho ideia de que dia do mes foi sabado nao e legal isso?).

Saimos bem cedo de Zapala com direçao a Esquel, tambem na ruta 40. Mas nosso dia previa uma passada na ruta 234, rumo a linda regiao dos lagos, cuja cidade mais famosa e Bariloche.

O roteio começou com San Junin de los Andes, onde nem paramos pois havia uma movimentaçao de feira agropecuaria e a ideia nao era disputar as ruas da cidade com o pessoal do evento. Paramos logo na entrada da cidade seguinte, San Martin de los Andes, para um cafe e uma medialuna que foram os melhores da viagem ate aquele momento. Mas nem desconfiavamos que o desayuno estava longe de ser o mais bacana daquele dia. Quando seguimos viagem, depois de passar pela rua principal de San Martin – que tem cara de cidade turistica de serra – avistamos o primeiro dos lagos. Uma paisagem impressionante. E assim continou boa parte da viagem naquele dia. A cada nova curva da estrada, um novo angulo ou um novo lago, formado pelo degelo dos Andes. Paramos em Villa la Angostura para almoçar um truta (que nao sera um destaque gastronomico da viagem nem para o bem, nem para o mal), compramos uns chocolates incriveis e seguimos viagem.

O percurso ate Bariloche foi mais complicado. Muitos trechos de ripio, e em obras, sem muita vista dos lagos pra nos entreter. Chegamos a Bariloche exaustos, so pra confirmar o que ja desconfiavamos: que a cidade nao e o tipo de destino que nos atrai. Apesar de banhada por um lago tao lindo quanto os outros do caminho, e um lugar caro e com aquele aspecto artificial e pretensioso de destinos turisticos de status. E o interessante de viajar de carro e que seguinte pela estrada descobrimos o que a maior parte dos turistas nao veem: os bairros pobres onde moram os trabalhadores e o deposito de lixo da cidade. Aquelas coisas que as pessoas fazem questao de fingir que nao existem, mas estao la e sao parte das ferias delas.

Seguimos entao para nosso destino naquele dia, Esquel. Antes, passamos pela curiosa El Bolsón, que Lonely Planet nos contou ser uma versao alternativa de Bariloche, meio hippie. Pela aparencia, achamos que faz sentido.

Contando paradas, estradas de terra, loooongos trechos atras de caminhoes na serra, chegamos a Esquel depois de 12 horas de viagem. Moidos. E ainda fomos procurar hospedagem. Nao fomos muito sortudos dessa vez, acabamos num hotel meio claustrofobico que nem era dos mais baratos. Coisas de quem chega a uma cidade que atrai algum turismo (parece que ha excursoes de montanhismo passando por la) num sabado a noite. Encerramos nossa noite com uma pizza e cumprindo nossa sagrada ultima tarefa diaria: tentar provar uma cerveja local (o que sera tema de post especificos quando retornarmos.

A combinaçao de longas horas de estrada (muitas vezes de ripio) e uma cervejinha no final de noite tem sido um poderoso sonifero e a principal responsavel pela demora nas atualizaçoes deste blog. Desculpem ai, pessoal.

No mais, lamentamos pela ausencia de fotos. Tambem estamos meio enrolados com essa parte, mas a ideia e ir acrescentando as fotos depois. Considerando a quantidade de assunto que vamos ter, este blog deve sobreviver um tempinho ainda depois que voltarmos pra casa.

Dia 09 – De Mendoza a Zapala

Para hoje estava previsto uma das maiores pernadas da viagem: 870km entre Mendoza e Zapala pela mítica Ruta 40. Por que mítica? Porque é das mais antigas estradas argentinas, de integração nacional, que liga pelo lado oeste o norte ao sul argentino, do tórrido deserto andino ao frio patagônico. A estrada percorre longuíssimos trechos de deserto, com distâncias enormes entre as cidades. Daí a necessidade de, em alguns trechos, ter um galão extra de pelo menos 20 litros de combustível. Você realmente não cruza com nada, exceto alguns carros e/ou caminhões em alguns grandes intervalos de tempo. Um grande convite à reflexão – e também a possíveis problemas se não estiveres bem preparado.

Depois de um dia praticamente perfeito e beirando o hedonismo, nos sentíamos preparados para um dia cansativo e possivelmente monótono. Cansativo certamente foi, pois não se dirige mais de 900km (a distância foi um pouco aumentada por um desvio) mesmo dividindo o volante sem cansar. Mas monótono e mesmo chato, não. Muito longe disso.

É difícil descrever algo tão insólita e inesperadamente belo. Ver a paisagem paulatinamente mudar de uma tonalidade verde para o marrom, dar um breve adeus aos Andes com seus picos com neve eterna para encontrar serras cobertas de cascalho e pedregulhos mas que a cada curva assumem formas e contornos espetaculares. Rios que nesta época do ano estão secos mas que deixam suas marcas na paisagem formando sulcos que serpenteiam pelos vales e mini-canyons, ocasionalmente dando lugar a arroios que permitem o nascimento de pequenos oásis com árvores altas e vegetação verde e rasteira que contrasta com o resto do local.

Tudo ocorreu tão bem, que acabamos percorrendo o trajeto uma hora a menos do que o previsto. Menino Pois É está se saindo muito bem, seja no asfalto, seja na terra, e todos nos adaptamos às longas kilometragens de tal forma que quando falta menos de 200km para o fim já dizemos “tá logo ali, tirim’ de espingarda”.

Ao chegarmos em Zapala, como não havíamos reservado nada, fomos perguntarm em um posto de gasolina sobre hotéis ou pousadas. O frentista, solicito como tem sido todos os hermanos, nos indicou uma pousada onde se alugavam quartos, ou departamientos, como se diz aqui. Duas quadras acima do posto. Chegamos, as meninas foram conversar com a dona do local e nos deparamos com uma quitenete muito simpática a 320 pesos. Fechamos. Queríamos ir comer e Gabriela, a dona, indicou-nos um restaurante duas quadras abaixo. Mais um parrillada muito boa em um restaurante com ambiente familiar e que saiu a módicos 55 pesos por pessoa.

AInda teremos mais três dias de Ruta 40. Mas ela já nos acolheu muito bem. Agora é partir rumo a Esquel passando por Bariloche e a região dos lagos andinos. Até.

Dia 8 – Sendo felizes em Mendoza

E nossa viagem entrou em velocidade de cruzeiro. Assim, sem arestas, sem turbulências. Depois do trajeto maravilhoso desde Córdoba, chegamos a Mendoza, e o santo bateu logo de cara. Estávamos encantados.

O lugar onde ficamos, Hotel Aragon, era razoável. Custou relativamente barato (150 pesos por casal, por noite, o que dá aproximadamente 75 reais), tinha uma boa localização, incluía café da manhã. Era um lugar limpo, mas muito simples, com colchas de cama com buracos, e chuveiro que entupia.

E Mendoza. Mendoza é uma fofura. Uma cidade charmosa, interessante, acolhedora. É uma cidade bem turística, e lembra um pouco Campos do Jordão, mas uns 70% menos coxinha. Cheia de praças, ruas arborizadas e boas opções de restaurantes, bares, cafés.

Não há como falar em Mendoza sem pensar em vinho, e o programa mais comum lá é a visita às vinícolas. Pensamos que não queríamos ficar o tempo todo por conta disso, e nos programamos para visitar apenas uma, que nos havia sido recomendada: a Bodega Luigi Bosca. Liguei de manhã, e consegui reservar a visita para 4 pessoas para as 15h.

Esse horário, porém, criou um problema: teríamos que almoçar antes de ir, e não poderíamos demorar demais. Acabamos decidindo tentar encontrar um restaurante já na região das vinícolas. Não podia ser tão difícil.

Por volta de 1 da tarde, pegamos o carro e tomamos o rumo de Luján de Cuyo, o lugarejo da região metropolitana de Mendoza que, juntamente com Maipú, concentra as vinícolas. Não foi difícil encontrar o caminho, mas os quilômetros iam passando, e nada de encontrar algum lugar para comer.

Já estávamos a 500m da Bodega, cogitando voltar até um minimercado e comer um sanduíche, quando vimos, à direita, escrito num muro: Cava de Cano – Restaurante. E não imaginávamos o que viria a seguir.

O portão estava fechado, mas quando embicamos o carro para descer e perguntar, um senhor sorridente apareceu, informou que o lugar estava aberto, e nos deixou entrar. Assim que ingressamos, um pátio lindo, sombreado, com um corredor com caramanchão de parreiras. Pensamos “vai ser caro”, e já íamos perguntar quanto era, agradecer, e voltar para o minimercado.

Mas então ele nos conduziu por ali até uma saleta reservada, onde uma mesa para quatro pessoas já estava posta, com uma variedade absurda de frios, embutidos, conservas, pães, e todo tipo de coisa deliciosa. “Esta es la picada inicial” (“Este é o aperitivo”), nos disse, e então os olhos de todos brilharam, e os escorpiões que habitam nossos bolsos aventureiros foram devidamente assassinados. Perguntamos o preço, sem convicção (150 pesos por pessoa pelo menu fixo, com bebidas incluídas, exceto o vinho da adega maravilhosa), pois já então ninguém mais tinha dúvidas de que íamos ficar.

Como num sonho, os sabores se misturavam, cheios de novidades. Frutas curtidas em vinho, queijos desconhecidos, quinoa, feijões, lentilhas, abobrinhas e berinjelas, pão, ovos, salames e chorizos, e até mesmo pedaços de tripa e morcillas gostosos e bem temperados. Tudo acompanhado por um vinho da Finca Las Nubes e água. Quando pensávamos que não era possível comer mais, ainda vieram uma deliciosa carne de panela e um macarrão à bolonhesa.

Os atendentes não ficavam por perto. Havia um sistema de chamada na mesa, para quando precisássemos deles, mas em geral se encarregavam de aparecer no momento certo. E foi já quando precisávamos sair para o nosso passeio que a atendente apareceu, sugerindo que fôssemos para o lado de fora para a sobremesa – um sorvete com pedacinhos de maçã curtida no vinho e doce de leite.

Saímos de lá leves, leves, o riso frouxo, e a sensação de que tínhamos vivido algo especial. Chegamos à Bodega, e a visita foi agradável, mas já havia sido ofuscada. Voltamos para o hotel, e fomos dormir um pouco, felizes e relaxados. Acordamos, e nem fome sentíamos, então fomos ao Carrefour comprar vinhos e víveres para a viagem.

Amanhã, de Mendoza a Zapala pela mítica Ruta Nacional 40, que o Lonely Planet chama de “a Rota 66 da Argentina”. 870km nos aguardam.

Dia 07 – De Cordoba a Mendoza

Como dito anteriormente,  após três dias passando perrengues gastronômicos prometemos a nós mesmo nunca mais passar fome novamente (o que sabemos ser mentira, porque nos trechos de deserto certamente passaremos a sanduba e suco quente). O dia começou promissor pois tivemos o melhor desayuno até agora, com direito a suco, café, leite, facturas (pãezinhos doces ou salgados feitos de massa folheada). Bem alimentados, nos despedimos do albergue em Cordoba (muito simpático por sinal), enchemos o tanque de nosso Pois É Cross, menina Deborah assumiu o volante e partimos rumo a Mendoza já sonhando com vinhos.

O bom desayuno nos pareceu um prenúncio de que teríamos boas coisas nos 660km seguintes. E logo de início fomos nos convencendo disso. Ao sairmos da cidade de Cordoba, adentramos às Sierras Centrales e… uau! Que visual fantástico! Nos sentimos até um pouco em casa pois o tipo de pedras, vegetação e sinuosidade da estrada lembrava-nos as serras de MG e SP.

Paramos para almoçar num vilarejo muito simpático na serra cordobesina chamado Mina Clavero. É uma das muitas cidadezinhas charmosas da serra. Ali, cumprimos nossa promessa e nos servimos de uma boa parrillada. Sem muita pressa, porque a Argentina é nossa e teríamos duas noites em Mendoza, ainda demos uma pequena volta pelo local e provamos de uma marca de alfajores local que certamente foi das mais gostosas que já experimentamos: La Quinta. Muito melhor que Havana, sem cobertura de chocolate (o que o torna mais leve), com um biscoito delicioso e recheios variados. Sensacional!

Saindo da região serrana, voltamos aos cenários anteriores de retas infindáveis e vastas estepes. Menino Moraleida assumiu o voante para cruzar a província de Santa Fé e após a divisa com a província de Mendoza, assumi o volante até a cidade de mesmo nome. Como foi bom ter um GPS nesta hora: nos guiou correta e diretamente ao hostel.

Estávamos cansados, mas com fome. Já se aproximava das 22hs quando resolvemos procurar um restaurante para jantarmos. Por sorte, ficamos hospedados próximo a um restaurante bem indicado pelo Lonely Planet: La Marchigiana. Mais do que recomendado. Tudo o que desejávamos naquele momento: uma boa pasta com um vinho local. Ali, menina Deborah demonstrou todos seus conhecimentos de enologia e nos brindou com a escolha de um excelente Malbec. Foi o fim de noite perfeito para a véspera de um dos dias mais aguardados do roteiro. E que foi onírico.

Dia 6 – Santa Fé – Córdoba

Dia de viagem curta – só 340km. É, já estamos assim, qualquer trecho menor de 500km achamos fichinha. Tem que ser assim mesmo, porque ainda falta muito chao.

Depois de uma noite de muito calor no albergue – nossa primeira hospedagem sem ar condicionado desde Curitiba, onde a temperatura ainda era agradável – o dia começou com uma novidade: tempo fresco. Nunca antes na história desta expediçao uma temperatura por volta dos 20º foi tao comemorada. Choveu durante a noite pra nossa sorte. Aliás, pra nossa sorte, choveu pouco em Santa Fé, porque em outros lugares da Argentina, incluindo Córdoba, nosso destino, caiu o mundo.

Com temperaturas mais frescas e mais cidades no entorno, encarar a estrada foi bem mais agradável. Chegamos por volta das 2 da tarde e tivemos tempo de passear pela cidade. A temperatura subiu bastante durante o dia, mas felizmente nao passou muito dos 30º, entao ficou fácil ser feliz. Comemos um sanduíche, passeamos a pé pelo centro histórico da cidade e a vida estava bem bonita.

Mas daí, depois de uma descansada no albergue, resolvemos sair pra comer. E começou nossa decepçao com menina Córdoba…

O restaurante indicado pelo Lonely Planet, que prometia parrillada a bons preços, estava fechado. Porque contávamos encontrá-lo, nao pedimos indicaçao no albergue. Andamos até uma avenida que fica a beira de um canal bem bonitinho, onde ficam alguns restaurantes elegantes. Achamos que nao eram para os nossos bolsos (nada excepcionalmente caro, mas a ideia nao era jantar elegante, e sim tomar cerveja e beliscar algo). Continuamos procurando por algo com cara de boteco classe média, andamos pra caramba, foi ficando tarde, nao aparecia nada bacana e terminamos num  bar com cara de cantina italiana, tipo familiar. O cadápio nao estava na porta e nao tínhamos como avaliar os preços antes, mas nem parecia caro.

Menina Deborah, essa vidente, ainda nos avisou que estava sentindo uma vibe parecida com “aquele que nao pode ser mencionado”. Dito e feito. Tudo caro. Pedimos só um porçaozinha de petiscos misto. Os salgadinhos estavam murchos e o que eles chamavam de presunto eram uns quadradinho de sebo desbotados que ninguém teve coragem de provar (Daniel e Ricardo, esses heróis, provaram e confirmaram: estava horrível). Só nos sobrou rir muito e lamentar a situaçao, prometendo a nos mesmo que we will never go hungry again hoje vamos empenhar nossos esforços em fazer uma refeiçao decente. Aguardem cenas dos próximos capítulos.

PS 1: Quando chegamos ao albergue, matamos a fome com uns salgadinhos e alfajores comprados pra comer no carro, enquanto chamávamos uns poucos e fiéis seguidores pra uma twitcam na madrugada brasileira. Quem estava online viu nossa carinha.

Update:

Acabamos de desayunar aqui no albergue (Morada Hostel) e estamos todos mais contentes. As facturas estavam otimas e o café foi o melhor ate agora em terras argentinas. O café da manha de ontem em Santa Fé era praticamente uma piada de mal gosto: torradas velhas, café ralo e um envelope de leite em pó.